Publicado em 13 de dezembro de 2010, na revista CULT.
Eduardo Socha
Ilustração Sattu
Você está parado no trânsito às 6 da tarde. Ouve a rouquidão opaca dos motores dos ônibus, o zumbido das motos, a impaciência ocasional das buzinas. O tempo parece amordaçado como se não quisesse fluir também. Então você resolve tirar do bolso seu tocador de mp3, ajeitar bem os fones de ouvido e escolher uma faixa do álbum predileto. Sua experiência do tempo vai assumindo outra feição, e os instantes passam a se amalgamar uns aos outros com uma qualidade bastante distinta do tempo anterior. A quantidade de tempo não muda: um segundo continua um segundo, tautologia assegurada pela isocronia do ponteiro (ou display) do relógio. Mas você sente agora que os instantes se dilatam e se contraem segundo uma contingência peculiar, promovida pelo encadeamento sonoro da música. Antes amordaçado, o tempo agora corre mais rápido ou anda mais devagar, dando-lhe a certeza de que sua percepção da passagem do tempo, enquanto ouve música, não coincide com aquela enquanto ouvia apenas ruídos do trânsito. Ao contrário do que sugere a cadência fixa do relógio, você realmente não sente os instantes de maneira quantitativa e exata. Ou seja, a passagem do tempo não é vivida pela sua consciência à semelhança de um relógio, no qual uma série quantitativa, marcada pela divisão em segundos, minutos e horas estabelece previamente a equivalência de todos os instantes. Na realidade, você vive uma sucessão ininterrupta de momentos qualitativos que não são divisíveis entre si, que se misturam uns aos outros e se organizam em sua memória com um aspecto único e intraduzível.
Dito de outro modo, vivemos o tempo de um jeito, mas geralmente o pensamos de outro: esse enunciado, banal apenas na aparência, deu esteio a paradoxos reincidentes na história da filosofia. De fato, estamos condicionados a pensar o tempo como uma dimensão quantitativa, cujos elementos internos são homogênos e definidos de antemão, o que nos permite balizar o tempo por meio de segundos, minutos, horas, dias, meses, anos e outras unidades de medida, conforme a conveniência da nossa necessidade particular. Assim, por força do hábito e, mais do que isso, por imposições práticas e fundamentais de sobrevivência, identificamos o tempo com uma linha sequencial de eventos. Consequentemente, construímos instrumentos e técnicas a fim de mensurá-lo, orientando nossas atividades partindo de segmentações apropriadas, seja no uso do relógio de césio, da clepsidra, do calendário, do azimute do sol ou do ciclo das marés.
Contudo, no interior de nossa experiência vivida, sentimos o fluxo do tempo como uma multiplicidade indivisível e heterogênea, que a cada instante se altera, se dilata, se contrai, reconfigurando instantes já passados, criando expectativas para instantes futuros. Por maior que seja nossa capacidade de antecipação, vivemos sob a torrente criadora da imprevisibilidade e da mudança, o que não nos impede de agir e pensar com regimes específicos de previsibilidade. Tal constatação, que sentimos na experiência mais trivial do nosso dia a dia, poderia ser finalmente resumida assim: os instantes, em instrumentos como o relógio, são sempre iguais entre si; quando vividos, são sempre diferentes.
Fácil na aparência
Reconhecemos desde já, portanto, duas modalidades para definir a noção de tempo. Por um lado, há o tempo considerado em uma dimensão quantitativa, tempo que pode ser medido, representado conceitualmente, submetido a cálculos e previsões: o tempo objetivo que, afinal, não depende de nossa consciência nem de nossa situação particular. Por outro, há o tempo considerado como fluxo qualitativo, íntimo, ligado aos estados internos da nossa consciência e, por isso, refratário ao cálculo e ao conceito: o tempo subjetivo que corresponde à efetiva passagem dos instantes nas nossas diferentes situações de vida. Não se trata de dualismo, mas de duas faces distintas para compreendermos com maior precisão aquilo que designamos singularmente pela palavra “tempo”.